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O Brasil e o destrato com a filosofia

A filosofia é uma inconstante nos currículos brasileiros, desde que se iniciou a escolarização ainda na época da colônia. A escola jesuítica a cultivou de forma módica, depois desaparece na reforma pombalina. No período imperial foi uma ilustre ausente e na primeira república também.

E assim, indo e saindo dos currículos, a filosofia atravessa os séculos e os regimes políticos sempre ameaçada de ser retirada quando logo após enxertada nos mesmos. A justificativa para entrar, aqui como em qualquer lugar no mundo onde se cultiva a filosofia, é o mesmo: é uma disciplina de caráter formativo, participando na formação humanista dos jovens.

E a desculpa para retirá-la é que ela parece só encher o currículo de disciplinas sem nada ofertar de “concreto” aos estudantes. Ou ainda pior, alguns a consideram perigosa e doutrinária na medida em que os jovens podem ter contato com ideias “revolucionárias”.

É de se notar que o Brasil não se caracteriza pela sua produção educacional; seu ensino e suas escolas, se servem de modelo para alguma coisa, é do que se deve evitar, e não o que se deve seguir. E mais ainda, todas as reformas educacionais foram feitas por políticos, nunca por educadores, o que faz que seja apenas um projeto sem viabilidade prática e sem substância teórica; é mais uma carta de boas intenções – e de boas intenções, dizem, o inferno está cheio – do que algo exequível.

Enfim, a educação nunca esteve sob a égide dos educadores, mas de governantes e seus improvisos. Portanto, o debate educacional é algo muito pouco educado, visto que nem educadores, nem a sociedade civil são consultados, restando apenas o ministro e seus assessores para estabelecer tudo para todos, querendo mostrar resultados imediatos com suas políticas, o que já revela seu desconhecimento completo do que seja educação, um processo por gerações.

Como são técnicos, economistas, advogados, engenheiros, contabilistas a pensar o problema da escola, nunca educadores, a coisa complexa se torna numa equação matemática simples e elementar (além de tola): os alunos estão mal nas disciplinas de português e matemática, vamos eliminar as disciplinas que não contam ponto nas planilhas que eles inventaram de valores “educacionais”.

Assim disciplinas cuja função não é colocar o aluno no mercado de trabalho ou para passar nos exames para o trabalho devem ser eliminadas, via de regra, exatamente as disciplinas que ilustram os jovens, que é o caso da filosofia, sociologia e artes. Ou seja, partem de um princípio muito pouco ilustrado do que seja a educação escolar, e acreditam que é apenas uma questão de engenharia econômica misturada com jurídica para resolver tudo.

Naturalmente, para esses técnicos e políticos que pouco ou nada entendem de educação, não percebem que estão impedindo nossos alunos de adentrarem na comunidade internacional, toda ela cultivada em vários princípios filosóficos, sociológicos e artísticos que nossos estudantes não saberão que existem.

Talvez, até aprendam a falar melhor o português ou fazer contas (o que duvido), mas será um monoglota que só poderá falar com brasileiros e sobre coisas domésticas, pois não terá cultura para debater as questões internacionais. O pecado dos técnicos é que pensam a partir do mínimo necessário, quando o princípio educacional é do máximo possível, o que o pensamento técnico pelo seu estreitamento estrutural é incapaz de captar.

O caso da filosofia é emblemático. Em todos os períodos ditatoriais ela foi suprimida dos currículos, aliás, só nos países ditatoriais ela está ausente na formação dos jovens. Nesse sentido, a sua retirada do nosso currículo é a volta ao que foi feito pelos militares, e, de certo modo, a saída brasileira da comunidade democrática internacional, pois que será a única democracia a não cultivar a filosofia entre seus cidadãos.

Visto que os fundamentos da democracia e da república foram tecidos através de vários filósofos no decorrer dos séculos, nossos estudantes não saberão fundamentar, e consequentemente defender, seja a democracia, seja a república, não saberá o que o torna cidadão, enfim, será um analfabeto político.

O fato é que a filosofia assusta políticos, religiosos, algumas ciências e muitas pessoas comuns por lhes darem poderes que não tem e não perceberem o poder que tem. Acusam-na de doutrinária quando ela é o maior antídoto contra a doutrinação: ela não tem objeto de crença, mas antes objetos de estudos. Acusam-na de inútil, de ser só conversa fiada, quando ela está ensinando e instrumentalizando a conversação.

Enfim, procuram coisas práticas e molestas no seu exercício, ou reprovam-lhe a pouca serventia para o exercício de uma profissão, mas não percebem que ela é um patrimônio da humanidade, e não dar acesso a esse capital cultural, é não apenas empobrecer culturalmente nossos jovens, mas deixá-los menos humanos, menos capazes de entender e lidar com a pluralidade humana.

O estudo da filosofia é um aprendizado do dialogar, é perceber como as ideias se constroem e se fundamentam no decorrer dos debates que os homens travam para aprimorar seus conhecimentos, na busca de suas verdades. Os alunos aprendem não a visão desse ou daquele filósofo, mas no contato com as ideias desse e daquele filósofo a ver de forma filosófica, abordando uma situação de forma totalizante, não deixando nada escapar da discussão. Como anões, subirão nos ombros de gigantes para que possam ver mais longe.

A função da escola, contrariamente ao que pensam muitas pessoas, não é reproduzir os valores dos pais, ou dar uma profissão, mas antes tornar as crianças em cidadãs do mundo. Se é função da família tornar a criança uma boa pessoa, é função da escola torná-la bom cidadão.

É na escola que ela tomará contato com ideais, crenças, verdades, costumes, religiões diferentes daquela que conhece do ambiente familiar, e isso é fundamental para inseri-la na sociedade pluralista de forma harmônica e consciente. A filosofia participa nessa formação para a cidadania em todas as sociedades democráticas, pois carrega consigo os pilares teóricos que fundamentam as ideias que nos são tão caras: direito, cidadania, soberania, democracia, república, e, é claro, liberdade.

Se não por outro motivo, a filosofia é útil até para ampliar o estoque de conversa à toa das pessoas, para o diálogo cotidiano que ocorre nas relações pessoais. O fato é que a filosofia é também uma educação para o diálogo, onde se percebe que as verdades são construídas nos debates de ideias e teorias realizadas em público, onde qualquer um pode participar e contribuir para o seu aperfeiçoamento, ou para a construção de novas verdades, pois que o mundo é o mesmo, mas o entendimento dele vem se modificando no decorrer dos séculos.

Roberto de Barros Freire é professor do Departamento de Filosofia/UFMT


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