O placar no STF foi bastante apertado, como em todos os assuntos verdadeiramente polêmicos que dividem conservadores e liberais nos tribunais superiores. A questão é saber: a presunção de não-culpabilidade, inscrita no art. 5o, LVII, da Constituição da República de 1988 admite execução provisória da sentença, sem o trânsito em julgado?
Sabe-se que o tema perpassa por outro princípio constitucional complementar que é a garantia do duplo grau de jurisdição, constitucionalmente acolhida pelo Decreto 678/92 que incorporou o Pacto de São José de Costa Rica à Carta Magna. As coisas se confundem um pouco no emaranhado principiológico nacional e confundem muitas pessoas – leigas e técnicas. Pretendemos refletir brevemente sobre a aparente contradição.
Qualquer acusado será considerado inocente até ter contra si uma sentença penal condenatória irrecorrível. Isso não significa, de forma alguma, que ele não possa ser preso. Em nosso sistema processual penal, é exigida a cautelaridade em toda a decisão que acolhe a segregação: garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, garantia da instrução processual e garantia da aplicação da lei penal.
Sem uma dessas quatro justificativas, ninguém pode ser preso provisoriamente no Brasil, seja por que crime estiver sendo processado. Portanto, a não-culpabilidade não exclui a segregação, desde que cautelar – repita-se. E, no caso da sentença condenatória já confirmada pela segunda instância ou julgada originariamente por um órgão colegiado? A situação é diferente? É sim. Completamente diversa.
A garantia constitucional do duplo grau de jurisdição não significa ter direito a ser julgado duas vezes ou mesmo por dois órgãos diferentes, até porque há casos em que a prerrogativa de foro conduz um processo penal a uma única instância – o STF e, ainda assim, é respeitada a garantia constitucional no que diz respeito a embargos infringentes ou embargos de declaração, por exemplo. Deixo claro que o duplo grau de jurisdição, muito embora a nomenclatura seja dúbia, garante a apreciação do caso por um órgão colegiado.
É isso que a Constituição quis assegurar até para oportunizar o debate entre julgadores experientes de várias tendências. Portanto, uma vez julgado o recurso de apelação em casos criminais por órgão colegiado em tese está satisfeito o que a doutrina chama de duplo grau de jurisdição. E então? Pode-se executar a sentença de imediato? Isso não arranha o princípio constitucional da não-culpabilidade?
Em vários países do mundo admite-se a prisão logo após o julgamento do recurso por órgão colegiado. Não é novidade para ninguém o modelo anglo-saxão e alguns casos de ordenamentos latinos. Ocorre, contudo, que o Brasil tem uma larga tradição de exigir da prisão o requisito da cautelaridade. Noutras palavras – a necessidade de prender.
É preciso demonstrar o que o meio jurídico chama de “perigo de liberdade”, ou seja, o juiz ou tribunal deve responder: o acusado apresenta algum perigo estando solto? Essa questão é fundamental para entender o imbróglio porque, com a controvertida decisão do STF, está autorizado o Poder Judiciário a prender um cidadão sem nenhuma cautelaridade, ou seja, sem esse fundamento tão caro ao nosso quotidiano jurídico.
A Constituição da República afirma claramente que todas as decisões judiciais serão fundamentadas, de acordo com o art. 93, IX. Com a decisão majoritária do plenário do STF, teremos prisões automáticas, sem qualquer fundamento calcado na cautelaridade (necessidade de proteção). Prende-se porque o acusado perdeu o recurso. Ponto final.
Nem o tribunal, nem o juiz singular deverão informar o porquê o cidadão está sendo preso, se a sentença condenatória ainda não transitou em julgado. Noutras palavras, o Supremo Tribunal Federal feriu não só um preceito (que poderia ser flexibilizado em nome da eficiência, da duração razoável do processo etc), mas afetou dois direitos fundamentais, desincumbindo o Poder Judiciário de fundamentar uma decisão tão grave como é a necessidade da prisão.
Parece-me que a cautelaridade – natureza jurídica de qualquer medida de limitação a direitos – caracterizada pela provisoriedade ou precariedade, está sendo deturpada.
Curiosamente quem mais sofrerá não é, ao contrário do que se pensa, o rico. Não. Quem vai lotar as cadeias públicas será o pobre. Se todos os mandados de prisão em aberto fossem efetivamente cumpridos, o Brasil precisaria triplicar o número de presídios.
A prisão em cascata, imediata e sem fundamento, vai desestimular as Defensorias Públicas ao exercício dos recursos constitucionais em defesa das pessoas que mais precisam. O STF reagiu às manobras protelatórias, mas se apequenou ao ceder às circunstâncias que deveriam ser reparadas pelo legislador e não por juízes.
Mirou no que viu, mas acertou no que não viu. O encarceramento brasileiro aumentará assombrosamente. Aos bons advogados, resta o habeas corpus e/ou o mandado de segurança aos tribunais superiores objetivando o efeito suspensivo do recurso especial e extraordinário interposto tempestivamente. Só vai dar mais trabalho e mais honorários, sem que haja o impacto pretendido pelo equívoco do Supremo Tribunal Federal.
Eduardo Mahon é advogado.