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Menos um latino-americano na MPB

Das coisas que gosto, a música – principalmente aquela de letra instigante – ganha destaque. Ouço música todos os dias, inclusive o “Som-Temporâneo”, ou seja, “os mais novos sons e as novas caras da nossa MPB”, conforme vinheta da Rádio Senado.

Todavia, do que tenho conhecido, pouco tem conseguido me cativar. Quase tudo dispensável. Mas como nosso país é imenso, não descarto ignorar pérolas que ainda não chegaram aos meus ouvidos. Se houver, pérolas, perdoai-me!

E é em meio a esse cenário de “inspiração ranzinza” – lembrando a escritora Hilda G. D. Magalhães, que vai na mesma linha do “Pneumotórax” de Manuel Bandeira – que acabamos de perder uma das maiores referências de nossa MPB. Mais do que um cantor, perdemos um compositor com porte de poeta maior. A América Latina perde um de seus filhos conscientes da terra em que nascera.

No último dia 30/04, o “rapaz latino-americano/ Sem dinheiro no banco/ Sem parentes importantes/ E vindo do interior…”, chamado Belchior – que já havia se afastado do circuito artístico-cultural –, encerrou sua participação na vida.

Agora, resta-nos rever seus poemas musicados. E suas composições abrangem diferentes aspectos: vão das lembranças da infância, das angústias inerentes à juventude, incluindo o medo de avião, até reflexões políticas acerca do período que se sucedera ao golpe militar de 64.

Para o Brasil, o cearense Belchior chegou pela voz de Elis Regina, que, em 1962, gravou “Mucuripe”, canção composta em parceria com Fagner, que lembra os belos textos de Dorival Caymmi sobre o mar:

“As velas do Mucuripe/ Vão sair para pescar/ Vou mandar as minhas mágoas/ Pras águas fundas do mar (…) Vida, vento, vela, leva-me daqui”.

Mar que não estava para peixes, posto terem de nadar contra a maré da ditadura:

“…Mas sei/ Que tudo é proibido/ Aliás, eu queria dizer/ Que tudo é permitido/ Até beijar você/ No escuro do cinema/ Quando ninguém nos vê…”

Da certeza de tudo ser proibido, de tudo ser vigiado por “…hipócritas, disfarçados, rondando ao redor”, conforme registrariam Bob Marley/Gilberto Gil, em “A Palo Seco”, Belchior marcava bem a década dos anos 70, que trazia tantas crueldades:

“Se você vier me perguntar por onde andei/ No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos, lhe direi:/ Amigo, eu me desesperava/ Sei que assim falando pensas/ Que esse desespero é moda em 76/ Mas ando mesmo descontente/ Desesperadamente eu grito em português…”

Hoje, sem Belchior para gritar em português, ou em qualquer outra língua que fosse, o desespero deve ser de todos os brasileiros que estão vendo ressurgir em tanta gente o abominável gosto pelo regime militar.

Nesse sentido, já fazendo parte dessa campanha horrenda, dias atrás, recebi duas mensagens das mais cruéis. Em uma foto, na Praia de Ipanema, uma legenda criada pelos defensores da volta da ditadura diz: “Na foto de 1979, dá para ver claramente Caetano e Regina Casé sofrendo torturas inenarráveis”.

Na outra, uma montagem tão esdrúxula quanto cruel traz uma foto dos Doces Bárbaros (Bethânia, Gal, Caetano e Gil), também em uma praia. No plano verbal, é dito: “Na época da ditadura ‘Os dias eram assim… Na praia, sendo barbaramente oprimidos pela ditadura”.

Que ironia estúpida! Que saudosismo desumano! Que imbecilidade!

Pior é saber que, neste cenário, estamos perdendo quem, partindo de suas experiências, podia dizer poeticamente que ainda “…há perigo na esquina/ (que) eles venceram e (que) o sinal está fechado pra nós/ que somos jovens…”.

Roberto Boaventura da Silva Sá é prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP

rbventur26@yahoo.com.br


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