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Decisão de Gilmar Mendes

Em 19 de dezembro de 2017, diversos meios de comunicação divulgaram a notícia de que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, teria proibido condução coercitiva de investigados em todo o país.

A decisão, proferida em sede de Medida Cautelar, “ad referendum do tribunal”, no bojo arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF de nº 444/DF, vedou, em todo o território nacional:

[…]a condução coercitiva de investigados para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

Impõe-se consignar, por relevante, que, ao deferir a medida cautelar, o Ministro Gilmar Mendes foi taxativo ao afirmar que o pleito cautelar dizia respeito, apenas, às conduções coercitivas levadas a efeito no âmbito da primeira fase da “persecutio criminis”, ou seja, em sede de investigações criminais.

Bem por isso, destaque-se, valeu-se da expressão “investigados”, e não “réus” – aqueles que têm sobre si uma acusação já passada pelo juízo de admissibilidade, do art. 395, do Código de Processo Penal.

A propósito, em sede de esclarecimentos, o eminente Ministro fez questão de destacar que “o emprego não especificado da expressão ‘condução coercitiva’ doravante neste voto fará referência ao objeto da ação – condução do imputado para interrogatório”, evidenciando, à margem de qualquer dúvida, que, ao menos por ora, o que se proíbe é a condução coercitiva em sede de investigações criminais.

Malgrado a restrição inicial explicitada na cautelar, ressaltou que ADPF nº 395 visa, no mérito, à declaração da não recepção parcial do artigo 260, do Código de Processo Penal, na parte em que permite a condução coercitiva do (i) investigado – em sede de investigações criminais – ou do (ii) réu – no bojo do processo judicial propriamente dito – para a realização de interrogatório, bem como a (iii) declaração da inconstitucionalidade do uso da condução coercitiva como medida cautelar autônoma, com a finalidade de obtenção de depoimentos de suspeitos, indiciados ou acusados em qualquer investigação de natureza criminal.

Pois bem.

De início, assenta-se que as trinta e cinco páginas da fundamentada decisão pareciam indicar um decisum autofágico ou, como preferem alguns, suicida, na medida em que seu proêmio contradizia, pelo menos a priori, a sua conclusão.

Assim se argumenta, porquanto, na ótica do Ministro Gilmar Mendes, a condução coercitiva não ofende o (i) direito à não autoincriminação, uma vez que “que o conduzido é assistido pelo direito ao silêncio e ao direito à respectiva advertência”, de modo que “só há potencial autoincriminação se o interrogado optar por falar, mesmo após advertido do direito ao silêncio”.

Nesse contexto, partindo da premissa que “Cabe à defesa decidir por falar ou calar”, o fato de “Submeter o investigado a interrogatório não é, por si só, uma violação ao direito à não autoincriminação”.

Dessa forma, fulcrado nessas premissas, quanto à vedação à autoincriminação, corolário do “nemo tenetur se detegere”, assentou o Ministro “que não há violação, nem ao menos potencial, ao direito à não autoincriminação”.

Ao prosseguir em sua extensa fundamentação, no tocante à tese do (ii) direito ao tempo necessário à preparação da defesa, em apertada síntese, observou que “Investigados e réus não têm a prerrogativa de definir o momento em que serão interrogados”, assim como:

Na investigação, não há uma acusação formada. O investigado não tem o ônus de preparar defesa, na medida em que não está enfrentando uma acusação. Pode intervir nas investigações, dando sua versão dos fatos, oferecendo razões, etc. Mas essa intervenção não equivale a uma defesa. Não há prazo de preparação para o inquérito policial.

Alegou-se, ainda, como tese, o (iii) direito ao devido processo legal. Nessa parte, porém, o preclaro Ministro, fazendo uma série de ponderações, assim se posicionou:

Se existe o poder geral de cautela, a condução coercitiva seria possível mesmo sem aguardar a ausência anunciada da testemunha. Se não, seria imprescindível aguardar o fracasso do julgamento.

A existência ou não de um poder geral de cautela no processo penal decidirá se o juiz pode abandonar o rito legal, em situações excepcionais, ou se está completamente amarrado pelo rito legal. Muito embora essa cogitação seja de relevância, o caso pode ser resolvido por outras vias.

Por essa razão, ao menos no atual estágio da nossa compreensão sobre a tipicidade dos atos processuais, tenho que não deve ser afirmada potencial violação ao direito ao devido processo legal.

Vencida a tese supra, abordou-se, outrossim, a questão do (iv) direito à imparcialidade, à paridade de armas e à ampla defesa. Para refutar tais fundamentos, destacam-se trechos nos quais o ministro Gilmar Mendes sustentou que “A imparcialidade não é violada pela atuação do juiz. Pelo contrário, é a imparcialidade do magistrado que garante a liberdade contra intromissões indevidas”.

Com efeito, de leitura progressiva do decisum, tem-se, aprioristicamente, a (equivocada) sensação de que o Ministro posicionar-se-ia favoravelmente à famigerada condução coercitiva, porquanto, à primeira vista, fundamentos relevantes haviam sido rejeitados pelo eminente julgador.

Observe-se que da decisão de trinta e cinco páginas, até a vigésima sétima, o que se viu foi o afastamento de todas as teses contrárias à famigerada condução coercitiva até então aduzidas.

Entrementes, ao rumar para as páginas derradeiras da decisão, na vigésima oitava lauda, mais precisamente, quando da análise da violação ao (v) direito à liberdade de locomoção, o Ministro da Suprema Corte, de plano, observou que, diferentemente “dos preceitos anteriores, a liberdade de locomoção é vulnerada pela condução coercitiva”.

No mesmo sentido, ao se manifestar sobre a (vi) presunção de não culpabilidade, destacou que “A restrição temporária da liberdade mediante condução sob custódia por forças policiais em vias públicas não são tratamentos que normalmente possam ser aplicados a pessoas inocentes”.

Ao dar uma guinada decisória – esperada, frise-se –, deixando clara a violação dos direitos à liberdade de locomoção, bem assim à presunção de não culpabilidade, o ministro Mato-grossense passou à explicitação do porquê da recepção (ou não), pela Carta Magna de 1988, do instituto da condução coercitiva.

Veja-se que, em sua decisão, encampou a tese de há muito sustentada por parte da doutrina, segundo a qual não faria qualquer sentido lógico obrigar-se o suspeito a deslocar-se até uma delegacia para, ao lá chegar, manter-se em silêncio.

A propósito, nesse mesmo sentido, o consagrado Delmanto Jr., muito antes da decisão sob enfoque, já lecionava que

Tampouco existe embasamento legal, a nosso ver, para a sua condução coercitiva com fins de interrogatório, prevista no art. 260 do CPP, já que de nada adianta o acusado ser apresentado sob vara e, depois de todo esse desgaste, silenciar. Se ele não atende ao chamamento judicial, é porque deseja, ao menos no início do processo, calar. Ademais, a condução coercitiva ‘para interrogatório’, daquele que deseja silenciar, consistiria inadmissível coação, ainda que indireta.[1]

Na mesma linha intelectiva, Alexandre Morais da Rosa e Michelle Aguiar, em interessante artigo, intitulado “Qual o regime da condução coercitiva no processo penal do espetáculo?”, sustentam que:

Ninguém faz com que outra pessoa seja deslocada do local em que se encontra para permanecer em silêncio, porque ao se optar pelo silêncio, tem-se a mesma consequência de que se o investigado não comparece ao ato previsto em lei: exercício de autodefesa manifestada através da opção por não falar, ou seja, desdobramento direto do princípio da ampla defesa concretizada através da vontade do acusado de não se auto incriminar.[2]

Ora, não se pode conceber, num Estado Democrático de Direito, que se obrigue um cidadão, presumidamente inocente, a deslocar-se, por exemplo, até a autoridade policial para, em lá chegando, dizer que valer-se-á de seu direito de silêncio, de guarida constitucional.

Tal ferramenta não é só ilógica, mas, sobretudo, incompatível com os postulados da Carta Magna, bem assim dos tratados internacionais[3] dos quais o Brasil é signatário e que se sobrepõem à legislação infraconstitucional, que é o caso do artigo 260, do Código de Processo Penal.

A condução coercitiva é, a toda evidência, completamente incompatível com espírito da Carta Política de 88. No entanto, não fosse o bastante a inadequação constitucional intrínseca ao instituto, o modo com o qual as autoridades públicas o utilizam acaba por maximizar – por incrível que pareça! – seus efeitos deletérios. Isso porque, a despeito da inafastável ineficácia jurídico-probatória, seu emprego, tal como vem ocorrendo, só fortalece a odiosa espetacularização do já criticado “processo penal midiático”.

 Portanto, ao encampar a corrente doutrinária que de há muito sustenta a insofismável incompatibilidade do instituto da condução coercitiva com o texto constitucional, defendida, entre outros, por Alexandre Morais da Rosa[1], Michelle Aguiar[2], Aury Lopes Jr.[3] e Delmanto Jr.[4], o Ministro Gilmar Mendes concluiu, acertadamente, que:

[…]a condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer. Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal.

Em síntese, e na linha do que se esperava, de vez que se trata de posicionamento mais coerente e consentâneo ao Estado Constitucional e Democrático de Direito, entendeu-se, enfim, ao menos em sede de medida cautelar, que, se “não há obrigação legal de comparecer ao interrogatório, não há possibilidade de forçar o comparecimento”.

Espera-se, agora, que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o mérito das Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais, não reverta a aplaudível decisão do eminente Ministro Gilmar Mendes. Todo o oposto. Aguarda-se, isto sim, que se extirpe, de uma vez por todas, esse espírito inquisitivo, autoritário e, sobretudo, antidemocrático, imanente à condução coercitiva, em qualquer de suas faces, seja em sede de investigações, seja na fase do processo judicial propriamente dito, seja, por fim, como medida cautelar autônoma – essa última utilizada como mero argumento retórico, fruto de descabido e vergonhoso contorcionismo hermenêutico.

VALBER MELO é advogado, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, professor de Direito Penal e Processual Penal em Cuiabá.

FILIPE MAIA BROETO NUNES é advogado do Valber Melo Advogados Associados. Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).


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