Leio com espanto. Acaba de ser divulgada resolução do chefe do Ministério Público Estadual, assinada no dia 19 último, que regulamenta o direito dos promotores e procuradores de receberem, a título de verba indenizatória, a bagatela de R$ 14.000,00, destinada à aquisição de livros técnicos ou para frequentarem cursos e congressos.
O espanto, não é tanto, embora devesse sê-lo: 1) pelo confronto com grande a restrição orçamentária que vem sofrendo as universidades, institutos de pesquisas e educação de um modo geral, ou, 2) pela falta de recursos para a área da cultura e, em particular, para a publicação de livros, instalação de bibliotecas e programas de incentivos à leitura.
Não me espanto igualmente na comparação com a acachapante disparidade existente com os demais cidadãos, no que diz respeito às condições que a estes são oferecidas para o desfrute de bens culturais, entre os quais a aquisição de livros.
Na mesma sintonia, qual professor dispõe de mínima verba oficial para a aquisição de livros, ainda que ditos “técnicos”?
Não me espanta o fato de que, para o “aparelhamento intelectual” desses prestigiados funcionários públicos, exista hoje uma infindável rede de instituições do mais alto nível, em âmbito nacional e internacional, nesse poderosíssimo instrumento de disseminação de conhecimento e cultura chamado internet.
Com um clique temos um manancial insuperável de informações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, capaz de suprir os mais exigentes e laboriosos. A um custo baixíssimo.
Não é isso também que me assusta, até porque muita gente, eu inclusive, gosta muito do livro físico, para sentir a textura de suas folhas, o cheiro de sua capa etc., entre outras razões.
Não me assusta o fato de que, com toda essa dinheirama, seria muito mais prático, eficiente, menos custoso e moderno criar uma biblioteca central aparelhadíssima, com a possibilidade de remessa de textos específicos e mesmo de volumes inteiros, para aqueles não residentes na capital. Isso não me assusta, porque tudo indica que está sobrando dinheiro.
Assim dez, cinquenta, cem desses funcionários podem comprar do mesmo autor, o mesmo volume, da mesma edição, numa duplicidade espantosa e … perdulária.
Essa observação tem em vista a existência, às vezes oficialmente incentivadas, de campanhas de incentivos a que, para economia, livros já lidos sejam repassados para outras pessoas com o mesmo interesse.
Ah! mas, isso é para aqueles que precisam fazer economia, como os pais que correm sôfregos a cada inicio de ano em busca dos livros usados no período anterior para que seus filhos possam utilizá-los a um custo mínimo, compatível com os seus empobrecidos rendimentos.
Para dizer o que me espanta neste caso, não irei utilizar de um argumento chão e repisado, e cediço, de sempre. Qual seja aquele que o país está vivendo uma crise de estagflação, que reflete sobre as finanças do Estado, inclusive sobre as verbas destinadas à Educação e à Cultura.
Não vou dizer, porque isso é mais do que consabido. Não vou dizer que todo – todo e qualquer – dinheiro vem do bolso de uma imensa população a que o Governo – federal, estadual, municipal – só retira, dando muito pouco ou quase nada em troca.
Não vou dizer que temos uma das mais altas cargas tributárias do Ocidente e, como dinheiro não nasce no mato, todo gasto tem um custo. Não. Não é isso que me espanta. Isso é o óbvio ululante, de que falava o grande Nelson. E até porque me haverão de responder na ponta da língua: tudo é legal e constitucional.
Então leitor, o que me espanta? Espanta-me a enorme capacidade de leitura de promotores e procuradores. Quatorze mil reais por ano representa um pouco mais de mil cento e sessenta e seis reais por mês.
Levando-se em conta, vá lá, um preço médio de cento e cinquenta reais por livro, um pelo outro, teremos entre setenta e setenta e sete livros a serem adquiridos por mês. Já existe aí algo significativo.
Mas, caminhemos. Considerando que cada livro tenha, por baixo, 250 páginas (na verdade, é raro o livro nessa área que não tenha pelo menos 300) têm-se uma pequena montanha de leitura mensal de no mínimo 19.250 páginas.
Por ano, nada menos que 231.000 páginas a serem devoradas. Talvez nem gênios conseguissem subir e descer incólumes essa montanha.
Tenho então a sugestão como um modesto leitor. Um curso intensivo de leitura dinâmica para todos os interessados.
Veja quão útil pode ser: nos Estados Unidos alguns desses cursos garantem que leitores competentes podem atingir níveis de 550 a 600 palavras por minuto com 70% de compreensão.
E num Campeonato Mundial de Leitura Dinâmica, realizado naquele país, a vencedora Anne Jones leu 4,7 mil palavras por minuto com 67% de compreensão.
Enfim, só assim será possível devorar essa montanha de livros que está sendo oferecida.
Embora o resultado final talvez seja o mesmo a que o genial Woody Allen, numa boutade, com a sua verve ferina expressou: “Fiz curso de leitura dinâmica e li Guerra e paz em 20 minutos. É sobre a Rússia”.
SEBASTIÃO CARLOS GOMES DE CARVALHO é advogado e professor em Cuiabá. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros [RJ] e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional [SP].