Finalizei a redação deste artigo logo após o Senado aprovar o impeachment de Dilma, mas antes de enviá-lo à redação, fui almoçar. Pensei que fosse ver um povo tocado pelo que acabava de acontecer. Nada. Um absoluto tocando em frente foi o que vi. Já no restaurante, pronto para enfrentar meu prato, mais uma vez me lembrei do poema “Rondó dos cavalinhos” de Manuel Bandeira. Naquele texto, que sempre serve para “fotografar” nosso lado grotesco, portanto, desumano, “os cavalinhos (estão) correndo” e, indiferentes a tudo, “nos, cavalões, comendo”.
Aquela indiferença de nosso povo pela vida política nacional me inquietou de tal forma que, agora, temo que o jogo de futebol entre Brasil e Equador, pelas eliminatórias, mobilize mais o interesse das pessoas, inquietas por saber se Tite acertará na escalação e condução de uma equipe desajustada. Diante desse desdém, pensei em nem escrever sobre esse marco histórico que foi o impeachment da Sra. Rousseff. Todavia, de imediato, lembrei do poema-musicado “Nau à deriva” de Humberto Gessinger, vocalista do “Engenheiros do Hawaii”.
Ali, após ser dito que a “Nau” (metáfora do Brasil do final dos anos 80, presidido por José Sarney) estava “à deriva// No asfalto ou em alto mar”, ouve-se um grito (“perigo, perigo”) de alguém que, supostamente de dentro da nau, tentava alertar os demais para a gravidade da situação vivida. Mesmo longe de pretender fazer esse papel, até porque se há um desdém, não há discurso que possa mudar isso tão rapidamente, quero dizer que, enfim, concordei, principalmente com a parte final do extenso discurso proferido pela Sra. Rousseff, na sessão do Senado que aprovou seu impedimento de voltar a ocupar a cadeira presidencial.
Mas o que diz o epílogo daquele discurso de Dilma? Clama por democracia. É o último pedido que ela faz aos “excelentíssimos” senadores, que de excelentíssimos, poucos têm alguma a ver. Ótimo, óbvio e pertinente que o clamor de Rousseff tenha sido esse. Ela trouxe à tona a importância desse bem simbólico a todos nós, que é a democracia. Todavia, já se podia prever que seu clamor não encontraria eco entre os senadores. Motivo: ela própria não era a melhor representação/incorporação de um sujeito político que fosse exemplar no exercício da democracia, por mais que seu discurso diga o contrário do que estou afirmando.
E por que falo isso com tranquilidade? Porque suas ações como presidente me credenciam para tanto. Dilma, embora se veja como democrática, e ela tem todo direito para isso, é autoritária. Seu autoritarismo, mesclado com um toque de desdém à lógica das coisas, se manifestou de saída, quando se autoproclamou de “presidenta”, dando um sopapo na “última flor do Lácio”. Depois disso, deitou e rolou, pelo menos até o início de segundo mandato. Por conta de espaço, cito sua relação com as universidades públicas, objetos de citações vangloriosas em alguns momentos de seu discurso derradeiro.
Poucas vezes na história deste país a universidade pública foi tão usada/assaltada por algum governo, como foi pelos governos petistas. Pior: quando os professores universitários, e não os gestores-agentes do PT, precisaram de dialogar com o governo, “a pilota sumiu”, escafedeu-se. Durante as duas últimas greves das federais (2012 e 2014), fomos solenemente ignorados por Dilma. Agora, a ignorada será ela. Sua história já passou. Só não podemos ignorar o valor da democracia. E esse valor, em minha opinião, não foi perdido no julgamento do Senado.
ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ é prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP.